Elysium e a alienação

31/10/2013 08:20

Fabiana Soares Mathias

(Texto com Spoilers) É difícil mencionar qual parte chama mais a atenção no filme Elysium. O diretor, muito mencionado pelo seu filme anterior Distrito 9, é uma mente interessante capaz de trazer uma história criativa, de baixo orçamento, e com uma crítica política forte. Neill Blomkamp, sul africano, gosta de apresentar como realidades futuras o que na verdade trata do que vivemos no tempo presente, e Elysium não é diferente, pois este filme se utiliza de muitas metáforas para nos mostrar a reificação e a alienação do ser humano, principalmente, do trabalhador.

A história começa com o personagem de Matt Damon, Max, ainda criança, sempre expressando sua ambição de chegar até Elysium, uma estação espacial onde vivem apenas aqueles considerados cidadãos (a burguesia, enfim), lá ninguém fica doente ou sofre com privações, pois tem uma fonte inesgotável de sustento que é o trabalho dos moradores da Terra. Enfim, uma discussão cética e crítica que coloca como balela a afirmação da sociedade capitalista de que a cidadania está automaticamente ligada ao nascimento em um determinado território, cidadãos de uma nação, enquanto, como bem diz José Murilo de Carvalho (2010), trata-se da assunção de direitos políticos, civis e sociais, pra bem mais do que apenas estar vivo. É a proposta central do filme discutir a exploração, opressão e distanciamento entre classes de modo insistente. Poderia naturalmente ter este texto o título de “Elysium e a luta de classes”.

O ambiente de Elysium é contrastante: apresenta o cenário caótico de um mundo destruído, miserável, sem esperança que é o da Terra e uma estação espacial similar aos mais caros resorts do mundo. A equipe de iluminação trabalha com uma estética muito parecida com a do filme Traffic (2000), de Steven Soderbergh, em que a Terra que parece uma imensa favela sul africana, recebe uma iluminação terrosa, nublada, quase suja, enquanto a outra possui uma iluminação e cores extremamente claras, limpas, para diferenciar o etéreo e o mórbido, e deixar ainda mais distantes as realidades e destinos destes mundos.

O elenco é composto de atores de várias partes do mundo, todos com fortes sotaques, o que traz credibilidade a lógica do mundo como um território único, sem fronteiras, um mundo em que todos estão sujeitos a mesma exclusão e carência, e é através destes personagens que são apresentados os ‘não-cidadãos’, como são chamados em alguns momentos no filme. Os não-cidadãos, ou seja, a população da Terra constitui uma massa proletária, a burguesia está muito longe em uma estação espacial, o filme deixa claro, não existe uma classe média, e assim como na realidade, esta não é nada senão uma ilusão para peões que tem pouca percepção de sua condição de explorados, só existem dois polos no jogo capitalista da exploração: burguesia e proletariado.

O personagem de Damon, Max é um operário de fábrica como qualquer outro. Blomkamp tenta em alguns momentos do filme glorificar um futuro, uma predestinação, mas creio que com medo do piégas ele não aprofunda tanto isso no filme e estas insinuações quase passam em branco em grande parte da história, só voltando a aparecer no desfecho. A primeira vez em que isto é mencionado é na representação da alienação religiosa, no caso, uma freira que cria Max, insiste em dizer que o mais belo é aquilo que se tem e pode ter, resignada em apenas olhar uma imagem da Terra em um camafeu. Em outro momento essa predestinação aparece quando um amigo lhe cobra que ele não é mais o mesmo por não roubar mais e Max, adulto e então resignado fala “pelo menos tenho um trabalho”, pouco sabe ele que a alienação de sua vida através da “fragmentação do corpo social em ‘indivíduos isolados’, que perseguem seus próprios objetivos limitados, particularistas, ‘em servidão à necessidade egoísta’, fazendo de seu egoísmo uma virtude em seu culto da privacidade” (MÉSZÁROS, 2006, p.39) poderia lhe custar muito caro no decorrer da história. Não se pode dizer que ele, um trabalhador, é um indivíduo egoísta que cultua a privacidade, mas, a rotina, a exploração constante e falta de perspectiva, bem como a grande maioria dos trabalhadores, roubou dele a capacidade de construir-se como ser coletivo, por ele e pelos outros. O sistema é perverso e não o trabalhador.

Max é um operário, um peão de uma fábrica que monta os robôs que mantem o controle na terra, nada mais condizente com o conceito de alienação que isso, e mesmo que isto apareça de modo sutil num rápido lance de câmera, podemos perceber a ironia, principalmente, porque o fato ocorre logo após ele ser abordado de modo violento por um destes mesmos robôs que ele ajuda a fabricar. Estes robôs controlam na Terra qualquer tipo de reação de oposição ao sistema, qualquer reação de animosidade, qualquer insatisfação. Qualquer semelhança com policiais e militares não é mera coincidência, pois não acredito que não era intenção do diretor usar os robôs como representação do aparato de opressão simplesmente para demarcar este como um filme de ficção, mas sim para frisar o papel coisificado e alienado dos servidores da segurança, de todo mundo, que mantem e defendem o mesmo Estado que os oprime.

Na história, após sofrer um acidente no trabalho, para Max fica claro que a condição do trabalhador é de um ser descartável, pois para ele não existe nenhum apoio real e este está fadado a morrer em 5 dias. A quem não acredita que o trabalhador é descartável sempre vale assistir ao documentário “Carne e Osso” para entender o quanto descartável é. Mesmo assim um elemento intriga em Elysium, pois na busca por sua cura, Max não parece se importar com nada maior que ele, que sua vida, ele não vai em busca da superação da condição de miséria coletiva, mas de sua saúde. Fica a dúvida para “o que”, para “que vida”, exatamente pretendia ele retornar. Seria o herói um sujeito da resignação? O diretor parece não superar isso na história e num certo momento do filme o oportunismo sincero do anti-herói do ator Wagner Moura parece ser muito mais revolucionário que Max.

Já que falei do ator Wagner Moura, seu personagens é Spider, um homem ora coiote (atravessador de imigrantes), ora hacker, que consegue se destacar muito bem em sua representação histérica e madura de um homem determinado a entrar em Elysium, inicialmente como forma de sustendo, enviando pessoas que pagam para ir e não pela mera generosidade, mas depois para quebrar o sistema que os oprime. Ele não é um militante feroz por mudança, mas um oportunista.

Outro ponto positivo do filme é o mercenário Kruger, quase imortal, muito violento e tão bem representado pelo ator Sharlto Copley, que se torna o principal vilão da história superando a Secretária de Segurança de Jodie Foster, que é uma personagem tão simpática quanto uma Secretária de Segurança pode ser. A atriz não cria nada de novo e pouca diferença faz quando morre. Kruger faz parte de uma milícia que é coordenada pela Secretária e vive, portanto, fora da estação junto a miséria e ao povo que ele claramente despreza, fato que deixa mais claro porque ele mesmo se rebela, a seu modo, no fim do filme.

O filme dá espaço a ação sem se perder na narrativa, tudo parece ter uma intenção bem profunda. No final, a história consegue amarrar as personagens, histórias e críticas, e traz uma das sequências finais mais emocionates dos últimos tempos no cinema. No momento histórico que vivemos não bastaria reiniciar o sistema, como no filme, pois as crises do capitalismo cíclicas ou estruturais não romperam com sua lógica, apenas a mutaram, recrudesceram e reiniciaram este sistema tornando-o cada vez mais danoso. É necessário na vida real e seria necessário na ficção, muito mais do que reiniciar um sistema, embora válida a metáfora, é necessário um outro sistema político, social, econômico, sem alienação e exploração do trabalhador, sem centralização de poder, sem opressão do homem pelo homem, sem a reificação do ser humano para romper as distâncias entre a Terra e Elysium da ficção e da realidade.

Referências

MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006.

CARVALO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. São Paulo: Civilização Brasileira, 2010.

[atualizado às 15:03]

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